Desde a antiguidade deu-se o nome de “igreja” também ao edifício no qual a comunidade cristã se reúne, a fim de ouvir a
Palavra de Deus, rezar em comum, frequentar os sacramentos e celebrar a Eucaristia [1].
Por isto, essa casa, “o edifício sagrado, na sua disposição geral, deve, de algum modo, reproduzir a imagem da assembleia congregada” 2. Neste lugar, onde a comunidade se reúne e celebra, tudo está disposto com o objetivo de tornar visível o mistério invisível celebrado pela assembleia reunida. Isto diz que, então, que não há espaço para nenhum elemento decorativo, para nenhum enfeite. Cada elemento encontrado, ao contrário, deve estar presente a partir da Mistagogia do edifício eclesial – essa palavrinha, às vezes desconhecida por nós, é a chave que abre uma porta, e que nos introduz no Mistério, através de uma catequese própria, chamada catequese mistagógica.
Essa era a catequese dos Padres da Igreja, como uma ‘teologia litúrgica’, uma explicação teológica do fato sacramental, que a comunidade de fé dos primeiros séculos da era cristã vivenciava e que encontra hoje um fecundo ambiente de redescoberta. Uma catequese capaz de nos conduzir à experiência do encontro, de estupor e maravilhamento diante do Mistério celebrado: Anúncio, Vida, Paixão, Morte, Ressurreição e Ascenção de Nosso Senhor Jesus Cristo – motivo pelo qual nos reunimos e celebramos como família, filhos e filhas no Filho, irmãos e irmãs em Cristo – fonte, ápice e centro da nossa fé, razão também da existência e presença da iconografia nos espaços de celebração.
Estamos aqui na igreja de N. Sra. do Perpétuo Socorro, nesse espaço que comumente chamamos de ‘nave’, símbolo da Terra – lugar onde a vida humana se desenvolve e caminha para a eternidade, o Céu, simbolizado pelo presbitério, onde está o altar. Este é, precisamente, o lugar da Liturgia da Palavra: da escuta dessa Palavra que “se fez carne e habitou no meio de nós” (Cf. Jo 1,14) para nos encontrar e nos levar ao Pai, pela nossa adesão e resposta de fé. Resposta essa que nos impele ao caminho, transforma a nossa vida a cada passo dado e nos ajuda a experimentar, a cada dia, nossa pertença e dependência de Deus.
Um trecho da oração do Rito de Dedicação de Igreja nos ajuda: “Ressoe sempre neste lugar a palavra de Deus, para revelar-vos o mistério de Cristo e efetuar a vossa salvação na Igreja”. Recolhida na Sagrada Escritura, a Palavra de Deus nos chama, já com o primeiro mandamento: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! (…). Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração!” (Dt 6,3-6). Jesus Cristo sintetiza a Lei de Deus em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (cf. Mc 12,29-34). Isso exige de nós escuta, disposição, intimidade, relação. Maria viveu assim, uma ouvinte atenta dessa Palavra guardada e meditada em seu coração. E do anjo ela escutou: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Com o “sim” (fiat) de Maria, Deus armou sua tenda no meio de nós (cf. Jo 1,14) e Maria tornou-se Theotokos: Mãe de Deus – porque o Menino nascido de Maria é “verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus” – verdade de fé proclamada pelas primeiras
comunidades cristãs e confirmada pelo Concílio de Éfeso em 431,
E assim, soa a voz do Pai para toda a humanidade. “Este é meu Filho muito amado, escutai-O” (Mc 9,7), frase que encontramos aqui, no vitral do presbitério, próximo ao lugar da Palavra. Pela boca de Maria, em Caná da Galileia, ouvimos ainda: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
Maria é Mãe de Deus e Testemunha da Palavra que se fez Carne e Via e Porta de salvação – Jesus Cristo. Orante, ela está sempre a nos indicar o Caminho e, como Nova Eva e Mãe de todos os viventes, é, também, Intercessora. Assim Maria é representada nos primeiros séculos da era cristã. Convida-nos, ainda, como nos fala Orígenes, a sermos também nós “mãe de Deus”, isto é, geradores e testemunhas de Cristo no mundo.
Esse é o testemunho que recebemos das primeiras comunidades cristãs, da Liturgia celebrada, dos textos da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição e, como não poderia ser de outra forma, também da arte cristã dos primeiros séculos, onde, os assuntos apresentados na iconografia mariana e seu modo de representação abarcam, na realidade, todo o mistério de Cristo. O conteúdo mariano é assim, antes de tudo, cristológico, pois Jesus Cristo é, de fato, o centro absoluto, o Eixo do Mundo. Essa iconografia mariana dos primeiros séculos da Igreja, presente nos ambientes funerários e nas absides das igrejas, apresentada em linguagem simbólica, traz características específicas de caráter doutrinal, com mensagem precisa, cujos assuntos nunca são privados de significado e as imagens são lidas com os textos da Sagrada Escritura, dos Santos Padres e Apócrifos. Maria, a Mãe de Deus foi apresentada de muitos modos, mas sempre seguindo esses fundamentos citados.
A imagem da Mãe de Deus no ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é de origem desconhecida, mas segundo uma tradição, teria surgido na Ilha de Creta entre os séculos 13 e 17 e apresenta uma das chamadas “Virgens da Paixão” que, com o Menino nos braços, destaca o significado da Paixão de Jesus e da intercessão da Mãe de Deus em favor da humanidade. Assim, na igreja onde estamos, a ser dedicada em honra à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a imagem da Mãe de Deus também é um ícone, o modo como ela foi originalmente representada sob esse título. E esse foi o lugar de honra, escolhido para receber o ícone, marcado pela presença dos três castiçais. Mas, antes de falarmos desse ícone, vejamos como Jean-Yves Leloup, em seu livro “O Ícone – uma escola do olhar”, define essa pintura sagrada:
O ícone é uma escritura simbólica não apenas pela riqueza dos sinais – que o contemplador procura pacientemente decodificar e decifrar –, mas também porque indica e chama a encarnação: o próprio símbolo daquilo que une ou reúne os elementos que, em uma primeira leitura, parecem estar distintos e separados:
o visível e o invisível; o tempo e o Eterno; o criado e o incriado; a forma e o sem-forma; o homem e Deus, etc. [2]
Obra realizada por um iconógrafo, ou seja, pessoa que sabe “escrever” e também sabe “ler” o ícone, é uma escrita em cores e formas, destinada à celebração da Liturgia e à oração. Do grego iekón, “não descreve uma história, mas relata tal história interpretando-a, simbolizando-a, transfigurando-a” (LELOUP, 2005, p.16). Também “não é um quadro com um tema religioso: é uma visão do mundo transfigurado (…)” (LELOUP, 2005, p.16).
De modo muito sucinto, tudo isso nos ajuda a entender que não se trata de uma simples pintura, ainda que uma obra de arte, mas que, através de métodos específicos, processos de cores, uso de símbolos e perspectiva invertida, o ícone tem a função de proporcionar ao observador que o contempla e com ele reza, como que ‘uma porta de percepção’, uma abertura à transcendência. Propõe, assim, a visão não de um objeto, de alguma coisa, mas de um “alguém”, ou seja, de um “Outro”, de uma “Pessoa”. Portanto, de um encontro. Fica claro, também, que suas características são fundamentais para garantir que o ícone não se torne um ídolo, ou seja, aquela imagem que, segundo Leloup, “detém o olhar que não pode ir além da imagem dada” [3]. Tudo isso nos coloca diante de uma escola, uma “escola do olhar”, onde o ícone, continuando com Leloup, entre outros, pode “nos ensinar a ler o Invisível no visível, a Presença na aparência e a ver o que o ícone se oferece para ser contemplado, sabendo que, paradoxalmente, isso não é visível; (…)”[4]. É, podemos dizer, uma teologia da presença.
É ainda nesse contexto que podemos ler, também, todo o programa iconográfico presente nessa igreja, no qual o ícone está inserido e que, com uma linguagem própria e adequada ao sagrado e ao espaço de celebração – ou seja, uma linguagem simbólica –, apresenta um conteúdo próprio para a nave, de caráter narrativo, e outro, para a área do presbitério, de caráter teofânico.
Voltando ao nosso ícone, essa pintura sagrada, escrita pelo artista sacro e monge beneditino Dom Ruberval Monteiro OSB é de origem oriental, feita sobre madeira e com técnicas e tradições seculares que obedecem a normas artísticas teológicas muito precisas. Usa têmpera a ovo e folhas de ouro 14 K, segundo padrões da iconografia oriental bizantina. Como imagem artística e religiosa do Invisível e Transcendente, é uma espécie de sacramental e contém mais informações que muitos livros. Por isto, é para ser lido e contemplado.
Esse ícone foi introduzido nessa igreja em procissão solene, quando da celebração do Rito de Consagração do Altar, fixado nesse lugar previamente definido pelo projeto arquitetônico-iconográfico, em vista da organização do espaço celebrativo, com objetivo de criar um ambiente digno onde os fiéis pudessem se aproximar e rezar, contemplando o Mistério ali escrito a partir das cores, inscrições, atitudes e detalhes. Tudo isso tendo em vista cada elemento que traz um significado preciso e nos transmite uma mensagem a partir dos textos sagrados, como veremos a seguir:
– o ícone é composto por quatro personagens, a Mãe com o Menino, ao centro, e os dois arcanjos, um de cada lado. Os caracteres gregos acima da sua cabeça a proclamam Theotokos, Mãe de Deus. Está representada sobre um fundo dourado, símbolo do céu na Idade Média, revelando, assim, sua importância. – no centro da obra temos, então, a imagem da Mãe de Deus, representada em meio corpo, segurando o Menino em seu braço.
A Mãe com o Menino é uma composição iconográfico presente já nos primeiros séculos da Igreja e revela o Mistério da Encarnação. A frontalidade dos personagens, ainda que não absoluta, e a falta de relação afetiva, presentes no ícone, são características da linguagem simbólica. A Mãe, cuja face se inclina levemente em direção ao Filho, tem seu olhar voltado para o observador, colocando-o diante de uma ‘presença’, podemos dizer, da experiência de ser “olhado”. Com a mão esquerda a Mãe sustenta o Filho e com a direita, recebe as mãos do Filho ao mesmo tempo que essa aponta para o Filho, apresentandoO ao observador-contemplador, é aquela que mostra o Caminho.
Na iconografia tradicional cristã as cores compõem a linguagem simbólica, sendo portadoras de mensagem. A Mãe de Deus, aqui, tem a veste em tonalidade azul profundo e manto vermelho púrpura, pigmento tão caro que era reservado apenas às vestes imperiais e, portanto, de grande nobreza e dignidade. E ainda com o texto da Sarça Ardente (cf. Ex 3), cuja iconografia se mostrou sempre na perspectiva do Verbo e do Mistério da Encarnação, unida à Mãe de Deus, temos então que, a Virgem, no momento da Encarnação, é a verdadeira Sarça Ardente, revestida pelo Fogo Divino, que sem destruir, ilumina e transforma a matéria[5]. Vemo-la representada dessa forma em outros ícones como o da Natividade, por exemplo, existindo ainda representações onde o manto é o azul profundo, depende da escola e da região. Aqui, o véu na mesma cor do manto, com uma franja dourada, esconde seus cabelos e a parte superior da fronte, assim como seus ombros. A Virgem nunca é representada com os cabelos visíveis ou soltos e o véu geralmente traz três estrelas. Como aquela que “guardava todas as coisas, meditando-as no coração” (cf. Lc 2, 19), sua boca é pequena e seus olhos são grandes. Seus olhos, cheios compaixão e ternura, voltados para o observador, mostra a prontidão em socorrer e amparar aqueles que a contemplam e o convite: sermos também nós, “perpétuos socorros” para o mundo sedento de Deus. O semblante de Maria, ainda que recorde as imagens do tipo da Ternura, “é o semblante sereno da liberdade humana capaz de dizer ‘sim’ (fiat) Àquele que É, que era, que será…” (LELOUP, 2005, p. 113), e n’Ele encontrar o sentido da vida, a paz e a alegria.
O Filho, por sua vez, tem auréola cruciforme em ouro, simbolizando o divino “Sol nascente que nos visita” (cf. Lc 1,78) vitorioso, e veste uma túnica branca, cor soma de todas as cores, símbolo do intemporal e da Luz. Com semblante adulto e fronte grande, cheia de sabedoria, olha no sentido contrário da Mãe em direção aos Arcanjos. Com feição serena, o seu Corpo inclina-se na direção da Mãe, colocando suas Mãos nas mãos da Mãe, em um movimento de confiança e refúgio diante dos instrumentos apresentados, os sinais que preanunciam sua Paixão. As sandálias desamarradas revelam o total despojamento do Senhor, cuja dupla kenosis se conclui na Cruz.
Por fim, no alto, lateralmente à figura central da Mãe com o Filho, encontramos os Arcanjos. Estão levemente inclinados em direção ao centro e “têm as mãos veladas, em sinal de adoração a Deus feito homem e de reconhecimento pela manifestação, na paixão, do poder redentor divino, isto é, a cruz é o sinal da ressurreição e da vitória final” [6]. À esquerda, São Miguel apresenta a lança, a vara com a esponja e os cravos. À direita, São Gabriel apresenta a cruz, já como cruz vitoriosa. Estes arcanjos também estão representados nos vitrais laterais ao presbitério e na capela da Reserva Eucarística, com inscrições próprias referentes às suas missões.
Muitos outros detalhes podem ser observados e contemplados. É fundamental termos sempre em mãos os textos da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição, que nos possibilitam uma boa Lectio Divina e nos colocam nesse Mistério. O espaço litúrgico e sua composição sejam, nesse contexto, sempre um convite e o resultado de uma pastoral litúrgica, que nos ajude, individual e comunitariamente, a viver, celebrar e aprofundar nossa experiência de fé, nosso encontro com o Belo, Jesus Cristo, na comunhão dos irmãos, pois como nos recorda o papa São Paulo VI:
“A Via da Beleza responde ao íntimo desejo de felicidade que está albergado no coração de todos os homens. Ela abre horizontes infinitos, que levam o ser humano a sair de si próprio, da rotina e do efêmero instante que passa, para se abrir ao Transcendente e ao Mistério, a desejar, como fim último do seu desejo de felicidade e da sua nostalgia de absoluto, esta Beleza original que é o próprio Deus, Criador de toda a beleza criada”.
Raquel Tonini Rosenberg Schneider
Arquiteta, especialista em Espaço Celebrativo Litúrgico e Arte Sacra – jun.2020
[1] Pontifical Romano; Cap. II: Dedicação de uma igreja, 1. 2 Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) 257 (294)
[2] LELOUP, Jean-Yves. O Ícone – uma escola do olhar. São Paulo: Editora UNESP, 2005. P. 20 e 21.
[3] Ibid., P. 14.
[4] Ibid., p. 15.
[5] Cf. MONTEIRO, Ruberval. A sarça Ardente e o coração contrito. Disponível em < https://livroquadrado.blogspot.com/search?q=a+sar%C3%A7a+ardente>. Acesso em 10.junho.2020.
[6] PARRAVICINI, Giovanna (organiz). A Vida de Maria em ícones. São Paulo: Edições Loyola, 208. P. 150. Texto da imagem da p. 151, ícone da “Mãe de Deus da Paixão”, século XIX (coleção privada, Itália).